Assim que a última cena termina, fico indignado, pois logo em seguida as luzes são acessas. Em casos como este, o cinema deveria dar mais um tempo, para que a gente possa se recompor. Não, não pode ser, deve haver algum engano, eu quero mais, eu quero muito mais, não é possível que tenha acabado. Como assim? A coisa continua, tenho certeza, quero saber mais de Vera (Elena Anayla)... Mas não tem jeito, o filme acabou mesmo, na sessão assistida ontem à tarde. Ou melhor, não acabou não, continua passando dentro de mim, continua crescendo, crescendo e me estimulando, e cada cena assistida é lembrada por minha memória, de forma disforme, mas presente em mim desde ontem, me estimulando, me impelindo a pensar cada vez mais nesta obra-prima de Almodóvar . É, o gênio espanhol voltou com tudo neste drama - terror, e os cinéfilos de plantão podem soltar os fogos, pois esta é sua melhor obra desde “Fale Com Ela”, o que convenhamos, não é pouco.
Mas me sinto incomodado em escrever sobre este filme, pois é uma daquelas obras tão imensas e complexas, que realmente não me sinto com capacidade e talento para tal. Fora isto, seria um absurdo ficar detalhando minhas primeiras impressões a respeito do filme, pois qualquer coisa mal escrita, traria a quem ainda não o viu, revelações que só devem ser saboreadas na grande sala escura. É um filme de mistério, de surpresas, que só um cineasta genial conseguiria fazer. Posso até falar uma besteira, mas este filme me remeteu a “Um Corpo Que Cai” do velho mestre do suspense Hitchcock, onde o que vemos na verdade nunca é realmente o que parece, e a tragédia espreita as relações de amor, ódio e dor dos personagens. E sim, cometo a (talvez) heresia de comparar os dois diretores, pois na verdade, acho que com esta obra imensa, Almodovar já merece estar e ficar ao lado do mestre do suspense, honra para pouquíssimos, bem eu sei.
Esta história é contada com idas e vindas ao tempo, forma necessária assim como em “Abraços Partidos”, mas é com “Matador” que vejo maior semelhança dentre as obras do cineasta. A morte e o sexo, - assim como em praticamente todos os filmes do cineasta - se faz mais que presente neste seu último trabalho,que esta mais para um terror. Aqui não cabe a tão usual comédia de seus filmes, mas todas as outras formas usuais (cores, transformistas, machões imbecis) estão presentes.
Antonio Bandeiras encarna com perfeição seu personagem (Robert Ledgard), um cirurgião plástico, extremamente comprometido com seu trabalho, principalmente depois de ter perdido sua esposa num incêndio e logo em seguida sua única filha. Não é à toa, ele lembra o médico e o mostro, no afã de construir a pele perfeita, a prova de mosquitos e queimaduras. Para isso passa por cima de tudo e quebra todas as regras. Ele sempre é auxiliado por Marilia (Marisa Paredes), sua empregada, que guarda grandes segredos a respeito de ambos. Neste cenário, vemos Vera presa numa espécie de cativeiro, na clinica do médico e ficamos a imaginar o porquê daquilo. O diretor presenteia o público masculino (e feminino também, por que não?) com generosas cenas tesudas de nudez da exuberante Vera, para depois cobrar o preço... Obviamente, o buraco é muito mais profundo do que nossa imaginação consegue chegar. A identidade, ou mesmo a falta dela, permeiam todos os personagens, e com o roteiro, a edição de idas e vindas, e a primorosa direção de Almodóvar, os nós são desatados, e nada era realmente o que parecia.
Ponto para o cinema muxoxo deste, que precisava desse respiro, pois isto é cinema. Ponto para Almodóvar, que nos presenteia com mais um cinco estrelas, um de seus melhores trabalhos, entre os já melhores, demonstrando seu total domínio em sua arte. Quem ainda não viu, corra ao cinema (em DVD é heresia), para ter uma aula de cinema. Amanhã irei de novo, é claro, pois é muita coisa para uma sessão só.