Assistir a este filme me fez lembrar a minha relação com
Raul, com meu pai, da minha infância já distante e como tudo se confunde na
minha cabeça.
Desconfiado, fui a casa daquele que seria meu padrasto e o
grande homem de minha vida. Ele queria me agradar, me conquistar, pois era eu,
o filho de sua futura mulher, e eu moleque de tudo, só estava acostumado a
escutar os discos do Roberto Carlos e no máximo, trilhas de novela. Mas eis que
ele me surge com sua coleção de bolachões do Raul, e com um disco novinho em
folha com o dizer “censurado”, era o
rock das aranhas que acabará de sair.” Fecha a porta, abre a porta, abre-te
sésamo”, literalmente. Hoje, arrependido é claro, só guardo da minha vasta
coleção de discos que um dia eu tive, aqueles mesmos vinis, tesouros afetivos
que herdei, maltratados pelo uso contínuo de um moleque querendo descobrir o
mundo com suas metamorfoses. Um belo dia, adolescente de tudo, época “DaLata”, eu já espinhudo, sou chamado no
quarto por este mesmo pai, que encontrará, num casaco que achei ser meu, mas na
verdade era dele, um presentinho que havia ganho de um amigo. “É sempre a mesma
batalha por um cigarro de palha/Navio de cruzar deserto”. Conversa difícil,
onde fiquei por um bom tempo versando ditos e letras de Raul, para me explicar,
mas no final com a promessa de não aparecer mais com “aquilo” em casa e na
minha vida, acabei convencendo ele (será?) que ele até que era o culpado (veja
só), pois tinha me apresentado o tal “Maluco Beleza” com suas filosofias
hippies alternativas, que aquilo era contestador e tal e coisa. Balela que ele
fingiu acreditar e eu fingi que tinha razão. Outros tempos, outras formas de
ver as coisas. Mas algo inesquecível, pois foi uma de nossas conversas mais
interessantes.
Tempos depois, me vejo na casa de shows Olímpia, onde Raul
Seixas, juntamente com Marcelo Nova, fez aquele que seria seu último show em
São Paulo. Casa lotada de “adoradores” que a cada gemido emitido por Raul
entravam em delírio, mas eu que fiquei bem próximo ao palco, fiquei foi muito
triste, por ver de perto aquele declínio de homem totalmente inchado pela
bebida e pela vida que se esvaía a olho nu. Raul não cantava, só balbuciava
palavras, enquanto Marcelo Nova segurava as pontas como podia, com sincera
admiração e respeito pelo “mestre” que dividia o palco com ele. Alias, sou da
turma que acha que Marcelo Nova, fez bem ao Raul, ele não quis se aproveitar, mas sim ajudar
Raul a ter uma sobrevida, conseguida com aquele disco “Panela do Diabo” e turnê
em conjunto. Ganhou com isso, é claro que sim, mas a impressão que tive foi de
quem mais ganhou foi o próprio Raúl que estava encostado, esquecido e sem
contrato com gravadora alguma, já quase morto, isso é fato. Algum tempo depois,
tive mais um “encontro” com Raul Seixas, coisa de dias antes de sua morte,
estava eu e mais um amigo - acho que era o Cássio - subindo a Rua Augusta,
quando paramos na lanchonete Aldeia (reformada, existe até hoje) e lá estava
aquele trapo de gente encostado tomando seu uísque, quase não reconheci, mas
nem quis ficar olhando, pois aquele não era, nem de longe o “Moleque
Maravilhoso”. Dias depois que ele morreu, fiquei sabendo que de fato ele sempre
estava naquele bar, pois morava na Rua Frei Caneca, bem próximo aquele local.
Onde morreu inchado, sem fãs e sozinho.
Portanto, é difícil falar sobre este filme, que por trazer
imagens inéditas e se dedicar a homenagear “Rauzito” já ganha todos os méritos
possíveis. Mas algumas coisas no filme chamam a atenção por mal ou por bem.
Surpresa boa foi o “arroz de festa” Caetano Veloso, prestar uma bela homenagem
declarando “Ouro de Tolo”. Ou mesmo a bem humorada entrevista de Paulo Coelho. Acho
que deveriam dar mais atenção ao outro grande parceiro Claudio Roberto ( na
foto acima com Raul), pois se percebe claramente que continua sendo o “Maluco
Beleza” que escreveu a letra de outro clássico. Por outro lado, a cenas
dispensáveis, como a empregada sobe ao apartamento em que Raul morreu, ela
falando que nunca tinha visto ele bêbado, chega até a ser engraçado. Como dizia
Raúl: Quando acabar o maluco sou eu! Faltou também um musical inteiro com ele
em plena forma, Walter Carvalho não deixa uma música sequer tocar inteira,
privilegiando o tempo todo os depoimentos, uma pena.
Conheço muita gente que torce o nariz para ele, e chega a
gemer de raiva, quando em algum lugar, seja bar, praia ou praça escuta: Toca
Raul! Mas mesmo estes, se derem oportunidade a si mesmos, de assistirem a este
documentário, darão conta da genialidade que havia por trás daquele homem
indecifrável. Uma verdadeira metamorfose ambulante, sempre a caminho do caos,
do amor e da dor, enquanto esperava pelo trem das sete horas, o último do
sertão.
Com carinho, de mais um Cachorro Urubu.