“Sentimentos em meu peito eu tenho demais”
Sentimentos adormecidos afloram já bem no começo deste singelo e genial filme, é quando a câmera percorre janelas e mobílias antigas em Osvaldo Cruz, bairro da Portela, ao som de um entre tantos belos sambas, as lágrimas já começam a rolar nos olhos. O cinema está cheio – que bom – e eu tento disfarçar. Mas não por muito tempo.
Saudade de tempos idos é o que move este documentário que procura retratar o que é, e também o que representa a Velha Guarda da Portela para o samba e
para o Brasil, que sem memória, não sabe cuidar de seus tesouros. Eu de minha parte, assisto ao filme comovido, com o coração apertado com saudades do que não vivi, com saudades das belezas que sei que existem, mas não pude vivenciar na minha pobre vida. Afinal de contas, quanta riqueza e poesia na alma daquela gente pobre e sem instrução, provando que cultura não tem nada haver com sabedoria. O que move a vida daqueles velhos acadêmicos do samba é a paixão pela amizade de tempos, a roda de sonho e samba tradicionalmente feito apesar do tempo e velhice no corpo, mas não na alma. Uma cena entre tantas do filme ilustra bem este sentimento que é quando a Velha Guarda toca em um botequim e uma senhora passa em frente ao bar com suas compras do mercado, ela pára, larga a sacola no chão e dança miudinho lindamente, vira moça jovem e sorridente, depois pega sua sacola e segue seus afazeres, só que bem mais leve.
Para isso tudo acontecer, foi preciso um trabalho demorado e delicado por parte da portelense e também produtora do filme, Marisa Monte, que como uma verdadeira Indiana Jones do samba, foi atrás de relíquias e baús escondidos de sambistas já mortos que nunca tiveram a atenção devida. Sua empreitada se fez por ela achar que – como ela mesma diz no filme- indo atrás daqueles sambas antigos o mundo ficaria mais bonito. Pois é, já não bastava ser a melhor cantora do Brasil, também é a caçadora e arqueóloga do samba.
O clima de melancolia envolve o filme o tempo todo. Um bom exemplo é quando “As Pastoras” junto com Marisa cantam, com a cidade do Rio de Janeiro ao fundo: “Mais hoje em dia eu não tenho mais/ A alegria dos tempos atrás...” As vozes vão diminuindo, as lembranças aflorando. Saudades da mocidade, saudades da época em que o carnaval era só coração, e não uma indústria de bicheiros. Na platéia, eu e outras pessoas, já não nos preocupamos em disfarçar o choro, interessante perceber uma moça jovem e bela próxima a mim chorando bastante, provando que o tempo pode até passar, mas os sentimentos podem ser sempre atuais e juntam almas afins.
Mas a momentos engraçados também, quando o filme retrata a velhice gaiata de Seu Argemiro, que segundo Zeca Pagodinho era o velho mais safado da Portela. Ou mesmo Jair do Cavaquinho, que graças à Marisa Monte gravou seu único disco e veio a falecer, assim como Seu Argemiro, logo após o término das filmagens.
Marisa, Paulinho da Viola e Zeca Pagodinho são coadjuvantes de luxo neste filme, em que as estrelas são estes velhos sambistas da Portela. Que mesmo escondidos ou mesmo esquecidos em Osvaldo Cruz fazem e fizeram deste mundo um lugar melhor através do samba.
Que o Brasil faça por merecê-los.
"Essas piranhas ficam para lavar a louça"... Genial. A lembrança do Zeca deu a verdadeira humanidade desses personagens, diferentemente de uma visão idealizada, que parece ter a Marisa Monte.
ResponderExcluirNesta edição da Bravo, a que tem o Machado na capa, há um texto ótimo sobre como são os ensaios desse pessoal da Portela. Se você chorou com o filme, vai ser difícil não se comover com o artigo, que é bem pessoal e emocionado.
Abraço, meu velho. Aguardo chamada para as próximas cervejas.