Logo no inicio do filme vemos um médico chegando a um povoado africano onde crianças sorridentes e miseráveis correm atrás de seu veículo, atrás de um brinde qualquer. Ganham uma bola e ficam satisfeitos. Em seguida vemos um garoto em outro continente, com outro nível de vida, totalmente triste, e pior, seu semblante carrega uma raiva desproporcional para uma criança, raiva pela morte de sua mãe e por achar que seu pai, que por outro lado, carrega uma angústia terrível o tempo todo, não fez o possível para salva-la. Dois mundos totalmente diferentes e interligados por aquele médico, como veremos em seguida. Vemos logo após que, ajudando todos aqueles necessitados, o mesmo médico se vê perdendo sua família devido à constante distância entre eles. Numa discussão com a esposa, que o está deixando, ele diz que se sente perdido. Uma frase síntese para denotar o que aquele homem passa vendo toda aquela violência sem precedentes, diante de sua índole pacifista.
A violência, seja física ou moral, permeia a história de todos os personagens neste filme difícil e belo. A talentosa diretora do ótimo “Depois do Casamento” nos brinda com um dos melhores filmes do ano, já ganhador do Oscar de filme estrangeiro. Dificilmente haveria concorrente à altura para ele. Este é um filme cheio de sutilezas, arestas e portas abertas, diante da dificuldade de (sobre) viver entre dores, amores, culpas e ressentimentos, seja num país miserável, seja num país de primeiro mundo, entre os mais ricos do mundo. Onde aparentemente não deveria haver problemas. Um filme que precisa de um olhar atento, ou melhor, uma segunda espiada diante de personagens tão complexos.
Numa cena, entre tantas tão emblemáticas, vemos aquele mesmo médico sendo esbofeteado na cara, na frente dos filhos. Querendo provar seu pacifismo, ele não reage, se apequena aos nossos olhos, aos olhos dos filhos, se apequena. E depois ainda levo outros bofetões e continua a não reagir e ainda diz que não dói aos filhos. Quem em são consciência faria isso, que parece ser a maior humilhação a que uma pessoa possa passar? Ainda mais na frente de outros a quem você deve servir de exemplo. Mas o que é um bofetão na cara, diante daquilo que ele vê acontecer com aquelas mulheres mutiladas e humilhadas que ele constantemente salva na África? A violência e ira que nasce no menino bem criado seria a mesma violência do “Machão” (mutilador de mulheres) africano?
O ser-humano é feito de várias camadas de amor, acúmulos de dor, raiva, esperanças, ressentimentos, e tantos outros sentimentos que se acumulam e nos fazem ser quem somos. A construção desse ser ,único, e seu convívio com todos os outros faz nossa vida rica e misteriosa. É sempre uma construção, seja aonde for, de aprender a viver e conviver com nossos próximos.
Sussane Bier parece querer nos mostrar nesse filme maravilhoso, que além de termos uma índole violenta pronta para explodir, temos muitas arestas em nossas vidas a serem trabalhadas e até digeridas por nós mesmos. O homem é o lobo do homem, e infelizmente vai continuar sendo assim por um bom – mal – tempo. Seja no Haiti, seja em Paris. Aprender, para vivermos em um mundo melhor.
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